Por influência de minha amiga Cláudia Santos, conheci os textos de Fabrício Carpinejar.
Quem é ele? Para quem não conhece, nada melhor que sua própria definição, em seu blog: "Escritor, jornalista e professor universitário, autor de dezessete livros, pai de dois filhos, um ouvinte declarado da chuva, um leitor apaixonado do sol. Quando conseguir se definir, deixará de ser poeta."
Pela linguagem e pelo dito, dá para perceber sua inclinação pela poesia e pela crônica. Pois bem, vamos ao deleite; uma crônica belíssima e emocionante, principalmente para quem gosta de cachorro ou outros animais - tenho três cadelas; uma das quais bem velhinha. (clique no título para ler direto na página do autor)
COLHER DE SOPA
Fabrício Carpinejar
Cora, a cachorrinha de casa, ficava assustada na virada do ano. Ela se escondia debaixo da mesa, da cama, das cortinas. Uivava para as janelas. Seus gemidos lembravam molas de antigos colchões. Dentes rangendo de insônia. Não se aquietava até que os rojões serenassem em fumaça.
Na troca de 2011 para 2012, ela estranhamente dormiu e não acordou com nenhum fogo de artifício. Suspirava no sofá. Uma colher de sopa perdida na almofada.
Aquilo me intrigou. O animalzinho traduzia tranquilidade de coma: anestesiada, desaparecida em si. Respirava fundo, avessa aos tormentos dos fachos.
Princesa, minha cadela mais velha |
Logo o animal que fugia dos trovões e das descargas elétricas nos morros.
A família se preocupou com a súbita quietude e fotografou seus movimentos nos dias seguintes. Quando ela caminhava de costas, invocávamos seu nome e ela não recuava. Batíamos palmas e ela sequer mexia o pescoço.
Reprisei que Cora não atendia nossa voz como antes, não obedecia pedidos para sentar ou deitar, não vinha na cozinha quando gritávamos "hora da comida", não abanava o rabo com a trilha sonora que Cínthya criou para ela.
Também latia menos e dormia o dobro.
Uma vitória-régia boiando na sala. Uma sanfona se coçando de vento.
Entrávamos de madrugada na residência e ela não respondia. Tínhamos que tocar em seu pelo para despertar uma reação. O tato era o seu último alerta.
As cenas foram esclarecendo os sintomas. Descobrimos que nossa cachorrinha está surda. Não escuta nada.
Despertou uma dor avulsa. Uma dor de azulejo de pares quebrados.
Cora não entende que foi ela que deixou de ouvir, mas acredita que nós deixamos de falar com ela.
Na cabeça da cachorrinha, sem explicação, todo mundo parou de procurá-la.
De repente, ninguém mais a chama, ninguém mais canta para ela, ninguém descreve as paisagens.
No seu universo preto e branco, a surdez é concebida como um castigo. Ela não sabe o que fez de errado para desaparecer o som de nossas bocas.
E treme de frio quando nos observa. Um frio de medo, não de vento. Um frio de quem precisa entender o que aconteceu. Olha longamente as vogais de sabão saindo dos nossos lábios e subindo aos céus. Palavras áereas, mudas, velozes.
Conto tudo assim porque amor é mudar, sempre mudar, sempre se adaptar. E nunca cansar de criar idiomas.
É agora pegar Cora mais no colo, é falar com as mãos, é se aconchegar ao seu corpo para que não mais estranhe o silêncio e reconheça os timbres pelo olfato.
O que é bom a gente divide pra multiplicar. E que todos sintam o gosto que eu sinto quando leio todos os textos do Fabro.
ResponderExcluirNão canso de ler. Lindo e comovente.
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